Semana passada fomos assistir ao filme “Selma“, que mostra Martin Luther King Jr e seu movimento pelos direitos civis na cidade de Selma, no Alabama, protestando contra as restrições que os negros enfrentavam na época para conseguir votar, mesmo depois da segregação racial ter oficialmente terminado no país. A marcha de Selma a Montgomery, capital do estado, foi marcada por muita violência e ameaças ao ativista Martin Luther King Jr. O filme marca o aniversário de 50 anos da lei federal de 1965 que acabou com as restrições barrando os votos dos negros naquela época e que incrivelmente vem retornando a cada eleição, dificultando os votos de minorias. Coincidência ou não, o filme está em cartaz em um momento conturbado, quando o racismo nos EUA está novamente em destaque na mídia depois de dois casos famosos onde júris majoritariamente brancos falharam em incriminar policiais brancos que mataram negros por excesso de força policial – o adolescente Mike Brown em Ferguson, Missouri, e o pai de 6 filhos Eric Garner, em Nova York. O movimento #BlackLivesMatter (“vidas Negras também são importantes“) está a toda com protestos pelo país, mostrando casos e mais casos onde o tratamento dado aos negros é diferente – e muito, muito pior – do tratamento que os brancos recebem.
Há anos existe essa discrepância absurda nos EUA, mas o movimento #BlackLivesMatter foi criado depois da decisão de 2013 no caso do adolescente negro Trayvon Martin, na Flórida: seu assassino, George Zimmerman foi declarado inocente, de acordo com a lei Stand your Ground, que permite o uso de força letal se a pessoa se sentir em perigo de vida (mesmo Trayvon estando desarmado, tendo sido abordado por Zimmerman, que o achou suspeito por estar andando no condomínio onde morava a noite). Na época esse caso rendeu muita discussão na mídia, os pais do adolescente falaram como adolescentes negros tem muito mais chances de serem mortos pela polícia do que brancos, discutiram a lei da Flórida, mas aparentemente nada mudou.
Ano passado, em agosto, o jovem negro Michael Brown da cidade de Ferguson, Missouri, foi morto por um policial branco. O policial disse que abordou o rapaz por estar andando no meio da rua e que Michael partiu pra cima dele, e que ele teve que atirar pra se defender. Os relatos de testemunhas são contraditórios, muitas dizem que o rapaz estava correndo pra longe do policial enquanto outras dizem que ele estava correndo em direção ao policial. A tensão racial em Ferguson, uma cidade majoritariamente negra, que se sente abusada pela polícia majoritariamente branca, explodiu em muitos protestos, quebra-quebra, e vigília até o julgamento (em 24 de novembro), que inocentou o policial e causou mais protestos em escala nacional. Um pouco antes do julgamento, um estudo mostrou que adolescentes negros do sexo masculino tem 21 vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que adolescentes brancos. Uma vergonha nacional.
Em julho de 2014, Eric Garner, um pai de 6 filhos, negro, estava vendendo cigarros avulsos na rua em Nova York e foi abordado por policiais, por não ter autorização pra vender os cigarros dessa forma. A conversa dele com os policiais foi toda filmada em um telefone celular, inclusive quando os policial resolve dar uma chave de braço e Eric Garner, no chão da calçada, diz repetidamente que ele não consegue respirar (“I can’t breathe“). Ele morreu assim, de forma estúpida, tudo gravado em vídeo, que se tornou viral imediatamente. Depois que o júri decidiu não investigar o policial branco no caso de Michael Brown em Ferguson e a maioria dos jornais disse que faltava evidência para uma decisão contrária, todo mundo imaginava que no caso de Eric Garner, com o vídeo, as coisas seriam diferentes. Pois não foram, no início de dezembro, menos de 10 dias depois da decisão em Ferguson, o policial em Nova York também saiu livre, sem nenhuma punição pela morte de Eric Garner. Mais protestos, mais gente nas ruas de Nova York, protestos em várias cidades americanas. #BlackLivesMatter e a frase “I can’t breathe” eram vistas em centenas, milhares de cartazes e camisetas de cidadãos incrédulos e chocados.
Quatro dias antes da decisão do juri em Ferguson, em 20 de novembro, o rapaz negro Akai Gurley foi morto por dois policiais que estavam patrulhando o complexo de apartamentos onde a namorada dele morava. Os policiais estavam nas escadas, com arma na mão, e sem iluminação, apenas com uma lanterna. O rapaz entrou na escada um lance abaixo, e o policial se assustou e atirou, atingindo Akai no peito. Ambos os policiais mandaram mensagens de texto pro sindicato pra perguntar que atitude eles deveriam tomar ao invés de ligar pro 911 pra chamar uma ambulância.
Dois dias antes da decisão do juri em Ferguson, em 22 de novembro, mais um caso: um policial branco matou o menino negro de apenas 12 anos Tamir Rice, que brincava em um parque público com uma arma de brinquedo, em Cleveland, Ohio. Uma pessoa ligou pra polícia dizendo que um menino negro estava no parque com uma arma, provavelmente de brinquedo. A polícia foi lá checar: o policial chegou e atirou no menino imediatamente, ele morreu no dia seguinte. A polícia local chegou ao cúmulo de colocar instruções no site pros pais ensinarem aos filhos do que fazer no caso de estar brincando com uma arma e a polícia aparecer. Como se nos dois segundos (literalmente) que o policial levou pra atirar no menino ele pudesse ter feito alguma coisa.
Também em agosto, o rapaz negro John Crawford morreu depois de ser atingido por dois policiais dentro de um Walmart em Dayton, Ohio. Segundo o vídeo e as testemunhas, os policiais atiraram de imediato, não mandaram o rapaz jogar a arma de brinquedo que ele carregava no chão (que ele pegou na loja e ia comprar), enquanto ele falava no celular com a esposa.
O movimento que estava pedindo para que policiais usassem câmeras corporais para ajudar a combater abusos continua, mas depois do caso de Eric Garner, deu pra ver que nem com a evidência em vídeo a justiça foi feita. Um comediante brincou que “a polícia precisa de câmeras mas que os jurados precisam de olhos“. Ao que parece eles realmente não tiveram olhos para assistir ao vídeo que todo mundo viu (eu não consigo assitir, assista somente se você tem muito sangue frio).
O tratamento que os negros recebem na mídia americana também está sendo questionado. Quando um grupo de brancos vai pras ruas e faz um quebra-quebra depois de um evento esportivo, as matérias falam em “pessoas bêbadas que perderam o controle”, “bagunceiros” ou “foliões”. Quando um grupo de negros vai pras ruas e faz um quebra-quebra depois de uma decisão dessas de deixar um criminoso livre por matar uma pessoa negra, a mídia diz que foi um “motim”, chama os participantes de “criminosos” ou “bandidos” que estão “destruindo suas comunidades”. Vocês podem ver uma coletânea de exemplos aqui, aqui e aqui. Um casal de adolescentes brancos que nos últimos dias saiu roubando vários carros e armas por três estados está sendo chamado pela mídia de novos “Bonnie and Clyde” (os famosos criminosos dos anos 30). Esse Tweet resume a situação:
“*Black man is shot* was his own fault
*girl is raped* she was asking for it
*white boy shoots up a school* he’s disturbed and needs help”
@srdtv
(Traduzindo: Um homem negro leva um tiro = foi culpa dele; uma garota é estuprada = ela estava pedindo; rapaz branco atira numa escola = ele tem um problema e precisa de ajuda)
Pra adicionar mais um item à crescente lista de discriminação, essa semana foram anunciados os candidatos ao Oscar desse ano: o fantástico filme Selma, indicado a melhor filme, não teve nenhum dos seus atores negros ou diretora indicados nas respectivas categorias. Pra completar, este é o Oscar “mais branco” desde 1998. E esse tweet também mostrou como as poucas mulheres negras que já ganharam o Oscar de melhor atriz estavam em papéis de escravas, empregadas domésticas, mães abusivas, seguindo os papéis aos quais as mulheres negras continuam sendo relegadas.
O movimento negro ainda tem muito o que lutar pra acabar com o racismo nos EUA, isso está muito claro. Eu continuo me chocando com todas essas notícias, é simplesmente inacreditável que essas coisas ainda aconteçam em 2015. Parece que ao mesmo tempo que tantos avanços foram feitos, ainda está tão longe do que é necessário para que todo mundo tenha realmente direitos iguais, independente da sua cor de pele. Como mãe, acho inadmissível que uma mãe negra tenha que temer pela vida de seu filho 21 vezes mais do que uma mãe branca. Segunda-feira é o feriado de Martin Luther King Jr aqui nos EUA (o seu aniversário foi anteontem, dia 15 de janeiro). Se ele fosse vivo com certeza estaria na rua, revoltado, marchando de Ferguson a não sei onde com todas estas mortes sem sentido. #BlackLivesMatter
tati says
Ainda nao tinha visto uma coletânea de informações nos EUA tao completa. VC está de parabens, como sempre. Precisamos começar a pensar neste racismo que faz a pessoa ter mais chances se sofrer violência. E
Luciana Misura says
Obrigada!
Alverson says
É verdade, lendo todos esses relatos em coletânea me encheu os olhos de lágrimas, mesmo tendo conhecimento de todos os casos. Fico particularmente tocado com o caso do menino Tamir, de 12 anos. Não tem como entender uma coisa dessas.
Ainda há o agravante da polícia de Nova York se revoltar contra o prefeito da cidade porque esse declarou ter conversado com o filho, que é negro, sobre os perigos de se lidar com a polícia da cidade que ele é prefeito. Parece tudo muito surreal. Obrigado pelo artigo!
Luciana Misura says
É um absurdo…essa do filho do prefeito eu não vi, vou procurar o artigo!
Alan Henrique says
Oi Lu !!
Eu acompanho a CNNi e realmente quando passa noticias sobre violência contra negros é sempre taxado como engano ou atitude necessária por parte policial e toda manifestação contra abusos da policia é taxado como motim ! eu acho isso engraçado pois o presidente é negro e agora ele fica numa saia justa para lidar com certas situações. o caso do Eric Garner não sei nem como descrever !
lendo suas outras postagens vi que teve um susto rececentemente e desejo que sua melhora seja completa ! e sim, com saúde a gente corre atrás do resto e com dedicação as coisas acontecem.
Mais uma vez obrigado, por ter respondido meu email e desculpe ter chego de “sopetão” já que eu te mandei email sem ao menos ter comentado uma unica vez no seu site ! Seu site é excelente !!
Luciana Misura says
Sim, Alan, com certeza o presidente fica na maior saia justa. Não dá pra ele jogar as decisões no lixo como muitos manifestantes pedem, o presidente tem que respeitar o sistema de justiça. Mas sim, precisa de mudanças urgentes!
Estou melhor sim, obrigada 🙂 Boa sorte nos seus planos!
Me says
Eu li os artigos e fiquei na duvida se essas pessoas realmente foram tratadas com discriminacao. Ja fui varias vezes no Walmart e as armas ficam trancadas em um armario, e quando vc compra uma arma por la o vendedor tem que levar a arma ate o seu carro. Nao pode andar com a arma dentro da loja etc. O que passa na cabeca de um cara que carrega a arma no ombro e fica andando pela loja com a arma. Tem testemunhas que disseram que ele esta apontando a arma pra outra pessoas.
O do menino de 12 anos, quem deixa uma crianca brincar com uma replica identica a uma arma de verdade? E ele fica apontando a arma pra outras criancas. O que um policial faz nessa hora? Como ele vai saber que nao eh de verdade, se ele fica apontando a arma pra vc e outras criancas?
O Michael Brown era violento, roubou a loja, resistiu ser preso, e avancou no policial. Nao dah pra defender uma conduta dessa.
Nao sei, fiquei na duvida.
Luciana Misura says
Daniele, você não colocou o seu nome mas eu já sabia que o comentário era seu pelo seu IP…as armas de verdade no Walmart ficam trancadas no armário sim, exatamente, mas a arma que ele estava carregando NÃO era de verdade. Era uma pellet gun que ele pegou na seção esportiva. Justamente ele não teria como pegar a arma de verdade pois ela fica trancada. E a “testemunha” disse depois do ocorrido que ele não estava apontando a arma para outras pessoas.
A do menino de 12 é a mesma arma que centenas de crianças brincam em todo os EUA. Se a polícia acha que não tem como identificar, então a venda deveria ser proibida. Mas eles não atiram em crianças brancas. Me mostra um caso de criança branca com arma de brinquedo que a polícia teve essa conduta de chegar e atirar na criança.
Não tem nada que prove que Michael Brown era violento, apenas o depoimento do policial. E o policial não sabia em nenhum momento que ele tinha roubado nada de loja nenhuma. E as testemunhas discordam do que aconteceu.
É muito simples ver como é racismo: é só colocar um rapaz ou criança branco de olhos claros na mesma situação pra ver que a polícia não age da mesma forma. Não tem essas histórias todas acontecendo com loiros de olhos azuis.
Me says
So, estou dizendo que ninguem esta na pele dos policiais, no momento pra saber. Julgar depois do ocorrido eh facil. Hindsight is always 20/20.
Luciana Misura says
Não precisa estar na pele dos policiais. Se existissem tantos casos de brancos quanto de negros, a discussão seria em torno do excesso de força usado pela polícia. Mas o excesso de força é direcionado aos negros, não aos brancos.
Daniele says
Acho que quem eh racista eh vc Luciana. Voce tem reverse racismo.
Alguns artigos que eu acho que refletem a minha opiniao.
http://crimepreventionresearchcenter.org/2014/10/inflammatory-and-misleading-claims-about-black-teens-being-vastly-more-likely-to-be-killed-by-police-than-whites-even-after-adjusting-for-crime-rates/
http://www.foxnews.com/opinion/2014/10/22/truth-about-young-black-men-and-police-shootings/
Luciana Misura says
Típico argumento sem fundamento…e links da Fox News…OK…se você se sente melhor em achar que os negros são tratados iguais aos brancos, continue assim fechando os olhos pro problema, afinal não te afeta em nada não é mesmo, pra que se preocupar…
Alessandra says
Gostaria de dar uma curtida no seu comentário Luciana. Muitos brasileiros insistem em fechar os olhos e acham que não existe mais racismo, que é tudo coisa da nossa cabeça, mas ele está aí, é só ser mais realista que dá para ver.
Lídice Martins says
Oi Luciana!
Sempre admirei a cultura e modo de viver americano, porém tem sido decepcionante ver as notícias daí ligadas a racismo… Não só por ser negra, mas principalmente por ser humana.
A cada frase que lia neste seu post me batia uma frustração tremenda. Que mal é esse que faz com que deixemos de nos enxergar como iguais devido à aparência???
Eu vi uma matéria, não me lembro agora a fonte, onde dizia que o vice ou presidente da Sony Pictures, não sei ao certo, fez brincadeiras constrangedores e racistas envolvendo o nome do Obama em uma troca de e-mails internos que vazaram devido ao ataque de hackers à empresa. (O ataque foi algo relacionado à aquele filme “A entrevista”.) Enfim, nem sei se a matéria tem credibilidade… Mas se for verdadeira, mostra como o preconceito está enraizado nas pessoas, independente de classe social; e que nem mesmo um dos homens mais poderosos do mundo, não está livre da ignorância alheia.
Tudo isto me choca!
Pior ainda é constatar a existência de pessoas que preferem fechar os olhos para o passado e para o presente ou mesmo justificar o injustificável…
Estes protestos não podem parar até que algo de fato mude por aí.
Os esforços de Martin Luther King Jr e o sofrimento de muitos outros não podem ter sido em vão!
Quero muito assistir Selma, mas aqui no Brasil, sabe como é, tenho que esperar…
Parabéns pelo post, mas acima de tudo, parabéns por sua firme e justa postura!
Paulo Ribeiro says
Sou policial há 17 anos e entendo o quê a sua leitora falou em relação ao “não estar lá para avaliar a situação”, concordo com ela, não podemos dizer categoricamente “sim, ele errou!!”, é comum a mídia se voltar contra a atuação de toda instituição policial quando o resultado é questionado, pelo simples fato de naturalmente dar mais audiência. Da mesma forma, reconheço que há uma grande parcela da sociedade americana que prega o WASP – WHITE ANGLO SAXON PROTESTANT, quem já leu algo sobre a formação da sociedade americana e acompanha as estatísticas há de concordar que o racismo existe e está longe de diminuir. Continuo admirando toda e qualquer sociedade que tenham os direitos do seu cidadão respeitados e que promova o seu desenvolvimento através da educação como pilar de uma sociedade desenvolvida, o que está muuuuuito longe de ocorrer no Brasil.
Tereza (Bruxelas) says
Lu, eu choro de raiva ! Como pode uma mãe negra temer 21 vezes mais por seu filho? Mas que mundo é esse? Obrigada pelo post .